Dear Life: uma obra-prima e pioneira do emo brasileiro
Em pleno 'Bug do Milênio', Hateen cruzou anos 2000 com um clássico atemporal
Quem viveu o réveillon de 1999 lembra bem do medo que pairava no ar: o temido fim do mundo na virada do milênio. Dilúvios, labaredas, asteroides — as previsões catastróficas pareciam cada vez mais palpáveis. Os telejornais alimentavam a paranoia, e o futuro soava mais como ameaça do que promessa. Talvez imersos nessa atmosfera de incerteza, quatro jovens de São Paulo tenham decidido deixar um testamento em forma de disco. Foi assim que, em 1º de janeiro de 2000, o Hateen lançou seu segundo trabalho de estúdio.
Não é exagero dizer que este álbum é um precursor do emo nacional e um dos lançamentos mais relevantes da nossa história recente. Há várias justificativas que sustentam esse reconhecimento. Uma delas: caracterizado por guitarras melódicas que remetem a Sunny Day Real Estate, Mineral, Jawbreaker e outras bandas gringas do “real emo” surgidas nos anos 1990, Dear Life é, certamente, um marco do desembarque sonoro que partiu dos undergrounds dos EUA rumo ao Brasil. E, assim que chegou, caiu no gosto de nichos alternativos aqui no Sul Global.
Vale lembrar que estávamos em plena era da globalização, com a grande Music Television (MTV) jorrando cultura juvenil nas telas brasileiras. É nesse contexto informatizado que o álbum se inicia com “404 Not Found”, a primeira faixa. Em inglês, Rodrigo Koala (guitarrista e vocalista) canta no modo “reiniciando o Windows”, acordando aos poucos:
“Connections made… Feelings start to fade away. You can’t hear my voice but you can read my words.”
Aí sim — tudo atualizado e pronto para rodar:
“Double-clicking my emotions — I’m trying to set up my life again.”
Daí em diante, é só pedrada: guitarradas e vocais que se alternam entre melodias e drives à la grunge. É simplesmente lindo, intenso e melancólico. O esquema do álbum segue uma trama com dois vocais — ora Koala, ora Cesinha Santisteba (baixista) — cantando em inglês.
Abre parênteses. O uso da língua estrangeira era comum no Brasil dos anos 1990, quando uma forte cena de rock independente adotava o inglês como idioma principal. Bandas como Pin Ups, Killing Chainsaw e Monkey Junkies eram algumas das mais conhecidas — mas havia muitas outra. O Hateen estava inserido nessa massa de bandas, parte de um coletivo sonoro de grupos conectados em diversos sentidos. Fecha parênteses.
Outra característica marcante do disco é a presença de riffs harmônicos nas duas guitarras que conduzem o repertório, assumidas neste registro por Koala e Boris Fratogiann. À época, algumas bandas americanas (The Promise Ring, Karate, Christie Front Drive) adotaram esse conceito artístico e se identificaram com o gênero Guitar. Nesse nicho, os sons mesclavam timbres limpos com overdrives cristalinos — características próximas ao pop rock alternativo dos anos 1990.
Voltando ao Dear Life, é possível notar que essas referências estão impregnadas no trabalho. “Fake Fate”, terceira faixa, apresenta o duplo vocal em diálogo e as guitarras típicas do Real Emo, Guitar e Indie da época. Na voz de Cesinha, que muitas vezes lembra Kurt Cobain (Nirvana), canta com angústia em acordes cleans:
Take me out of this place right now.
Because I´m dying day by day,
I just can´t wait for my death.
No refrão, vozes e cordas são mais intensos:
I will not feel insecure again
Because i’m killing all my pain
And you won’t recognize me
I will not kill my pain again
Because it’s done and I’m free
Of your amazing way of living
A sequência do álbum é primorosa e viciante. “My Birthday” e “Still Don't Know” entregam uma melancolia profunda nas letras e nos arranjos; “We Two Feel Blue e About To Blow” trazem os aspectos do que estava em alta na gringa com o Blink 1992 e Green Day, e no Brasil com Pin Ups. Estas faixas, inclusive, são amostras do hardcore melódico que acompanham a banda nos últimos 25 anos de estrada.
A Hit Is a Hit
Falando em estrada, é em “Danger Drive”, oitava faixa do disco, que mora a excelência deste trabalho. Tudo começa com um riffs melancólicos, grooves lentos e um vocal choroso. Numa tradução literal, Koala despeja uma letra forte e densa:
Eu fecho meus olhos enquanto estou dirigindo de volta para casa.
Por que eu preciso ver algo de que não gosto?
Mudando o caminho, eu me perdi de volta para casa.
Onde estou? Essas ruas parecem tão iguais.Poderia eu mudar o mundo esta noite sem mudar meu coração por dentro?
Poderia eu mudar meu caminho de volta para casa, deixando você fora da minha mente?Eu sempre pego os caminhos errados que me levam de volta pra onde você está.
Você pode sentir a morte, quando você está vivo.
O clipe de traduz visualmente o sentimento da canção. Nele, os integrantes da banda vagam sem destino pelas estradas durante a noite. Em uma parada numa loja de conveniência, tentam comprar algo, mas o dinheiro mal dá para isso. No bolso do vocalista Koala, restam apenas algumas moedas e uma fita demo de Dear Life — tudo o que ele tem. A banda retratada é uma metáfora viva: sem rumo, sem perspectivas, sem esperança.
No refrão até o final, vem uma pedrada do Hit:
Cem milhas por hora apenas para ficar mais perto de você.
Alcançando a morte por todo o caminho… me sentindo deprimido, exposto e triste.
Eu guardo o volante que me mantém querendo estar ao seu lado.
Você pode sentir a morte, quando você está vivo.
E isto não está muito bem, e isso não é tão legal.Queria que você me pudesse ver lá, e queria que você quebrasse meu carro.
Me desculpe, é tudo vergonha, mas a culpa não é minha se você me faz dirigir tão rápido para chegar em qualquer lugar. Então, eu fecho meus olhos.Talvez, eu estarei de volta esta noite. Talvez, farei você triste ou feliz esta noite.
Isto depende da maneira como dirijo de volta para casa.
Fortíssimo.
Na aclamada série Família Soprano (1999–2007), o 10º episódio da primeira temporada, intitulado A Hit Is a Hit, traz uma reflexão sobre o conceito de obra-prima. Em uma conversa marcante, os personagens Christopher Moltisanti e Hesh Rabkin discutem o que torna uma música realmente boa. Hesh argumenta que a excelência de uma canção não se explica por parâmetros técnicos ou empíricos — é algo natural, humano e instintivo. Para ele, uma boa música simplesmente é boa.
Se Hesh, um produtor musical de grande sucesso e membro da máfia italiana, não consegue lidar com essas subjetividades, quem sou eu para contestar essa opinião? Por isso, lhe dou o livre arbítrio. Segue a letra traduzida e o clipe oficial do single. Vá em frente!
Terminado os instrumentais de “Danger Drive”, o silêncio entre a respiração ofegante de Koala e os primeiros toques da bateria, chamam os ouvintes para as duas canções finais do disco. Em Big Life (One Last Goodbye), experimentamos a sensação de um amor romântico genuíno que enfrenta seus dilemas do adeus. É, de certa forma, um sopro de esperança. Nesta canção, Alexandra Briganti, vocalista da Pin Ups, divide as letras com o Koala:
Eu só queria dizer um último adeus
Talvez possamos tentar em outra vida
Um último adeus, só mais uma vez
Talvez possamos tentar apenas mais uma vez
Um último adeus...
Eu sei que você não pode ficar, mas você sempre estará aqui
Sempre comigo
Brand New Day é a trilha de despedida, soa como se fosse uma faixa bônus que entrou no disco para cumprir um papel adicional: inserir brechas para novas composições:
A vida é o amor que você tem procurado por toda a sua vida
Os amigos lá dentro, cada um de nós
No entanto, essa dor não é suficiente para me manter longe
Dentro do meu coração há um lugar com o seu nome
Está tudo quebrado desde 11/08/1997
Seis anos depois, no álbum Procedimentos de Emergência — o primeiro cantado em português — o Hateen lançaria '1997', faixa que lhe trouxe o merecido reconhecimento além do underground. Aqui vale a máxima de que… A hit is a hit.